LETRAS
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração
Sino da minha aldeia
Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma
Ó sino da minha aldeia
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Aquilo que a gente lembra
Não querendo lembrar
E parado se desmembra
Como um fumo no ar
É música que a alma tem
É o perfume que vem
Inútil, vago, trazido
Por uma brisa de agrado
Do fundo do que é esquecido
Dos jardins do passado
É música que a alma tem
É o perfume que vem
Teu riso
Ó menina quando ecoa
No meio do vale
Esse teu largo riso
Largo tudo nesse mundo
Vou aonde for
Mais nada é preciso
E nada mais é preciso
O Menino Jesus verdadeiro
Num meio-dia de fim de
Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado
outra vez menino
A correr e a rolar pela erva
E a rir de modo a se ouvir de longe.
Tinha fugido do céu.
E era nosso demais
Pra fingir de segunda pessoa da Trindade.
Um dia em que Deus
estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
fugido.
Com o segundo se fez eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz.
Depois fugiu pro Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia
comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças d'água,
Colhe flores e gosta delas e as esquece.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas nas cabeças
E levanta-lhes as saias.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Me mostra como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar pra elas.
A Criança Nova que
habita onde vivo
Me dá a sua mão
E a outra a tudo que existe no mundo
E assim vamos os três pelo caminho que houver
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério nenhum
E que tudo vale a pena.
Ao anoitecer brincamos
as cinco pedrinhas
E depois lhe conto histórias das coisas dos homens
E Ele sorri
E adormece
Ele dorme dentro da
minh'alma
Às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas pro ar
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer,
filhinho,
Seja eu a criança.
Pega-me tu ao colo
E leva-me pra dentro da tua casa.
Despe meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E me dá sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Toda a paz da natureza
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa"
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar
Toda a paz da Natureza
Tudo vale a pena
Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do
Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Deus
Às vezes sou o Deus que trago
em mim
E então eu sou o Deus e o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse deus se esquece.
Às vezes não sou mais do que
um ateu
Desse deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.
O meu olhar azul
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque tudo é como é
E eu aceito, e nem agradeço,
Pra não parecer que penso nisso...
Quer pouco: terás tudo
Quer nada: serás livre
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Não diga nada
Não diga nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada dizer
E tudo entender
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não diga nada!
Deixa esquecer.
Talvez amanhã
Em outra paisagem
Diga que foi fantasia
Aquela viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não diga nada.
Quando ela passa
Quando eu me sento à janela
Pelos vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa...
Quando eu me sento à janela
Pelos vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Que já não passa...
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser neste mundo
E mais um anjo no céu.
Quando eu me sento à janela,
Pelos vidros que a neve embaça
Julgo ver a imagem dela
Que já não passa...não passa...
Vento que passa
Sopra demais o vento
Pra eu poder descansar...
Há no meu pensamento
Qualquer coisa que vai parar...
Talvez esta coisa da alma
Que acha real a vida...
Talvez esta coisa calma
Que me faz a alma vivida...
Sopra um vento excessivo...
Tenho medo de pensar...
O meu mistério eu avivo
Se me perco a meditar.
Vento que passa e esquece,
Poeira que se ergue e cai...
Ai de mim se eu pudesse
Saber o que em mim vai!...
Alga
Paira na noite calma
O silêncio da brisa...
Acontece-me à alma
Qualquer coisa imprecisa...
Uma porta entreaberta...
Um sorriso em descrença...
Uma ânsia incerta
Com aquilo em que pensa.
Sonha, voa
Até quem me suponho
E a sua voz de névoa
Roça pelo meu sonho...
Alga
Paira na noite calma
O silêncio da brisa...
Acontece-me à alma
Qualquer coisa imprecisa...
Uma porta entreaberta...
Um sorriso em descrença...
Uma ânsia incerta
Com aquilo em que pensa.
Sonha, voa
Até quem me suponho
E a sua voz de névoa
Roça pelo meu sonho...
Já não posso andar só
Vai alta no céu
a lua da Primavera
Penso em ti
Completo em mim
Estou
Quando te vi, te amei já
muito antes
Nasci pra ti antes de haver o mundo
O amor é uma companhia
Já não sei andar só pelos caminhos
Porque já não posso andar só.
O som do relógio
Eu amo tudo o que foi
A novidade
A obra nasce
Sagrou-te, e fôste desvendando a espuma,
O tédio
Jarrinho
A lavadeira